A-28

Existe uma autoestrada a umas centenas de metros do meu quarto. Nas horas noturnas carregadas de silêncio oiço os carros, camiões, motas a passar. Dezenas, centenas, milhares passam e eu posso ouvi-los a todos passar.
Cada um leva pelo menos uma pessoa: o condutor. Estará a ouvir música? Na rádio? Um CD? Uma cassete? No telemóvel? Estará a pensar? Na família longincua? No trabalho? Em sexo? Na música que ouve? Na vida? Em política?
Cada um vai só. Rodeado da escuridão. As estrelas ofuscadas pelas distantes luzes das cidades.
Ao ouvi-los são insignificantes. Ao simplesmente passarem também.
Travem os vossos veículos e as vidas que neles transportam! Fazem barulho ao movimentarem-se e eu quero dormir.

(7 de junho de 2017)

Van Gogh

O coração não quer
O que o coração não quer.
Dói
E depois deixa de doer,
Porque deixa de sentir.

E a parede é só uma parede,
Uma companhia monótona.
E é monotonia que sinto
Nesta agitação que me destrói.

Preciso de beber amarelo.

(13 de junho de 2017)

Perfeição

Quando era criança perguntei à minha mãe o que era a perfeição e ela respondeu-me que esta se encontrava naquilo que considerávamos que se encontrava: Deus, Arte, Ciência... E nesse dia considerei perfeitas as botas vermelhas, as papoilas, as minhas irmãs, o avô e os seus coelhos recém nascidos.
No entanto, hoje considero que a perfeição se encontra nas memórias de algo não dito. É que eu vi... E tal como uma conversa começou com um "Olá" e terminou com um "Adeus". Não me lembro dos sons pois os surdos não precisam deles para saber o que é dito da mesma forma que os cegos não precisam de ver para saber se algo é belo.
Os olhos são a morada da alma, na alma é onde se encontram as emoções e são estas que importam pois é nelas que reside a perfeição. Portanto bastou-me não olhar mas ver como um cego vê para saber que a tinha encontrado.
E todos os segredos partilhados eram parte disso, tal como todos os toques desde uma raspadela não intencional ao mais caloroso e íntimo abraço. E todas aquelas lágrimas eram apenas uma forma de não deixar secar um campo florido à luz do sol. E todos aqueles risos e sorrisos eram o que lhe dava som e cor, não o deixando como uma velha fotografia a preto e branco.
E eu não sei se alguma vez me viu verdadeiramente em vez de só olhar. Também não sei como sentiu esta nossa "conversa". E nem desconfio do que terá encontrado em nós. Mas sei como o vi e senti e sei o que encontrei, pois no dia em que não pude olhar eu vi. E vi-a.


(19 de fevereiro de 2016)



Rotina Noturna

Dorme, rapariga, pois estás cansada. A máscara que usas durante o dia é recarregada pela tristeza noturna que sentes quando estás sozinha. ...