Às Rodas

Nada é garantido
Essa é a única garantia que temos. Nada está perdido
Exceto este jogo de irracionalidades No qual, repletos de emoções e cheios de sentimentalidades,
A nós próprios nos perdemos

Mas no meio deste jogo sei que
Um do outro não nos perdemos. Encontrei-te perdido às dez e meia da noite.
Encontraste-me perdida a essa hora no teu quintal.

Voltemos às origens.
Abraça-me e beija-me como primeiramente o fizeste.
Encosta a tua cabeça no meu peito,
ouve as válvulas abrir e fechar.
Por ti?
Não.
Por mim?
Não.
Então por quem?
Eu não sei.

(3 de maio de 2017)

Película & Vinil

O teto branco do meu quarto é uma boa superfície para projetar as imagens originadas pela minha mente como se fossem um filme. E eu gosto de ficar ali, a observa-las com um interesse alheio.
Quão bom seria o flme se eu juntasse algumas memórias chave da minha vida para formar uma história? Certamente único, provavelmente interessante, rapidamente esquecido.
Toquem-me Beethoven, Tchaikovsky, Chopin enquanto enqunto morro. Deixem-me morrer no climax. Tudo o que acontece depois dele não vale a pena.

(fevereiro de 2017)

Ninguém

Nos corredores vejo-te a rir
De um rapaz solitário,
Que usa roupas demasiado largas para o seu corpo,
Que se esconde atrás dos livros
E que nunca tira os auriculares dos ouvidos.

Mas rir-te-ias se te dissesse
Que esse rapaz tem vergonha de si?
E se te dissesse
Que por pessoas como tu se se rirem dele,
Ele começou a rejeitar a comida?
E se te dissesse
Que os livros são a sua fuga,
Pois há sempre personagens com problemas maiores que os seus?
E se te dissesse
Que a música berrante que ele ouve
É a única coisa que preenche o vazio dentro de si?
Rir-te-ias?

(18 de abril de 2017)

Vénus

Estás cego. A tua paixão fervorosa por uma ideia é-te mais prejudicial à vista do que cataratas sobrepostas nos já enfraquecidos olhos de um idoso. O sentimento que te move é apenas real porque o criaste de raiz. Qual Terra Média, qual Hogwarts...
Não te permitiste apreciar a pessoa que estava à tua frente, ver a deusa que ela achava sentir-se aos teus olhos, cada vez mais nua, exposta. Querias espreitar algo inexistente. Talvez o coração de que os amantes falam. Ou a alma?
Não a vias dançar para ti? A chamar o teu ser para o seu íntimo e a pedir que a acompanhasses? Não a ouvias cantar? O seu chamamento de sereia apenas dirigido aos teus ouvidos? Não leste as suas cartas? Os seus constantes pedidos suaves da tua presença e atenção?
Olha para ela. Deitada no teu leito à espera que se lhe juntes. Acaricia a sua face, o seu braço,  o seu ventre. Sente as suas carícias no teu rosto, no teu pescoço,  no teu peito, no teu coração. Acaricia-lhe o ego, a autoestima. Procura a sua alma e devolve-lha com igual carinho.
Abandonada. Perdida. Confusa. Ela corre. À beira mar, para norte, para os lobos, à noite. Vai correr a seu lado. Agarra-lhe o braço,  não a deixes entrar no mar gelado. Puxa-a para o teu corpo quente. Abraça-a na sua apatia, Sr Empático,  fá-la sentir, aquece-a.

(9 de junho de 2017)

Despersonalização

Sentei-me e olhei para a rapariga à minha frente. Tinha os olhos vermelhos e inchados, os lábios desidratados e com feridas abertas, a mão levemente inchada, o cabelo preso num rabo de cavalo despenteado, o rosto pálido. A sua respiração estava acelerada.  Olhava em frente, alheada da preocupação da sua mãe que estava sentada ao seu lado.
Mexericava num pequeníssimo e belo búzio com as pontas dos dedos, ocasionalmente imobilizava-o , olhava-o, uma lágrima caía dos seus olhos, guardava-o no bolso, retirava-o e tudo se repetia.
Aleatória e momentaneamente fixou os seus olhos nos meus e percebi que ela era eu.

(14 de junho de 2017)

Biografia

Aos 12 anos obrigaste-te a deprimir sem razão,
Gritavas aos sete ventos que querias morrer.
Oh jovem, não te tinhas apercebido ainda que esse era um desejo desperdiçado?
Morrerás de qualquer das formas.

Aos 13 anos começaste a rejeitar as amizades
Por causa da tua autoinduzida depressão.
E depois vitimizaste-te.
Oh jovem, a tua cegueira aumenta.

Aos 14 anos percebeste que já era tarde demais.
Oh jovem, finalmente!
Ao tentares emendar os teus erros, o que sentias tornou-se genuíno.
Não melhoraste.

Aos 15 tiveste uma nova oportunidade.
Também não a aproveitaste muito bem, pois não, jovem?
Deixaste-te levar pela irracionalidade.
Parvo.

Aos 16 puseste um chapéu e deixaste o vazio encher-te.
Encheste, então, esse vazio de vozes e o teu nome passou a ser Fernando Pessoa.
Andaste aí a fazer poesias, mas diz-me, jovem,
Quão poético és tu nessa tua solidão cuja culpa é igualmente tua?

Aos 18 compraste um maço de tabaco e uma garrafa de absinto
E bêbado escreveste o teu pior poema
E as vozes que enchiam o teu vazio começaram a afogar-se no álcool.
Já achas a tua depressão suficientemente vedadeira, jovem?

Aos 20 a pessoa que mais amavas abandonou-te,
Estava farta dos teus queixumes.
Pelo menos foi o que ouvi dizer.
Oh jovem, aumentaste o número de garrafas.

Aos 23 compraste algo injetável.
Aos 24 deixaste crescer o cabelo e a barba.
Aos 25 tiveste um bastardozinho.
Aos 26 compraste uma pistola.

Aos 27 eras um Kurt Cobain esquizofrénico de chapéu.
As poucas vozes que te restavam deixaram um último poema
Antes de desaparecerem numa última inundação de heroína e absinto
E de dares uso à pistola que tinha comprado.


(21 de abril de 2017)

Wendy

"Lavar os dentes, xixi, cama!" disse a minha mãe,
Estava na hora de apagar a luz
Mas eu não queria ir dormir.
Queria ver um pouco mais de televisão,
Mas os desenhos animados já tinham acabado.
Agora passavam só "programas para adultos".

Queria continuar a brincar,
Fingir que percebia de "assuntos de pessoas crescidas"
Sem saber que também eu iria crescer,
Também eu teria que os perceber.
Ou pelo menos fingir.
Ser só mais um índividuo vaidoso
A tomar um café e a mandar bocas para o ar,
Aparentar saber o que se discutia na televisão,
Representar o papel de quem sabe ser e estar na vida.

Ingénua criança com o estetoscópio de plástico ao pescoço,
Com a gravata do pai
E os saltos altos da mãe,
Não cresças!
Cai do carrinho, finge perder-te.
O Peter encontrar-te-á
E não te deixará cair na miséria.


(16 de junho de 2017)

Rotina Noturna

Dorme, rapariga, pois estás cansada. A máscara que usas durante o dia é recarregada pela tristeza noturna que sentes quando estás sozinha. ...