Boneca Francesa

Os cabelos outrora coloridos não se distinguem dos brancos, fundem-se todos nos caracóis que emergem da sua cabeça.
As velas dos candelabros apagam-se à mais leve brisa deixando o mundo numa escuridão fria com o leve cheiro ao fumo que desaparece pela frincha da janela aberta.
A sua face que uma vez fora rosada e viva está agora pálida como pó de arroz e com a expressão neutra de uma boneca. A tinta que a ornamentava escorre chuvosa pelas bochechas deixando marcas de rios negros.
Versalhes faleceu perante a monstruosidade opaca do seu olhar. O barroco do seu vestido parecia arrancado à força com a brutalidade de um invasor estrangeiro. Só lhe resta um sapato e nenhum Príncipe que lhe traga o par.
A parede é preta e ela está sentada numa cadeira de madeira manufaturada.

(9 de setembro de 2017)

Junho

Estava sentada numa clareira com um homenzinho verde.
Alienígena à minha vida, todo ele era verde,
Desde a sua aura às suas sapatilhas.

A clareira onde estávamos era verde, também.
A relva húmida onde nos sentávamos, verde.
As folhas das árvores acima das nossas cabeças delirantes, verdes.
Os arbustos que nos rodeavam, verdes.
Até a luz sonolenta do sol se tornava verde quando filtrada pelas folhas verdes das árvores. 

As nossas conversas eram feitas de frases e promessas verdes.
Os meus sonhos esverdearam, fundindo-se com a tela verde atrás deles.
Só eu não era verde naquela clareira.
Era uma alma com uma fronteira entre as cores primárias,
Os amantes azul e amarelo impedidos de se ligarem.

Olhava o meu companheiro verde no nosso espaço verde.
Tanto verde à nossa volta e eu não fazia parte dele.
Tanto verde à nossa volta e eu não precisava de fazer parte dele.
Tanto verde à nossa volta e o único verde que precisava era o daquele ser.

(8 de setembro de 2017)

Operário da Revolução Emocional

É um operário enferrujado e dorido a cair do cimo da chaminé da fábrica onde uma vida trabalhou não tirando as mesmas vestes velhas e gastas, vermelhas e acizentadas que assim o cobrem desde que se cansou.
A sua esposa automatizada chora-o automaticamente ao lado dos seus filhos e filhas quase apáticos que apaticamente gemem a sua perda no cubículo a que chamam casa.
O cenário varia entre tons de castanho, cinzento e negro. Por vezes está salpicado por vermelho escuro e sujo do sangue ainda mais sujo que escapou através das feridas sujas deixadas pelos acidentes de trabalho. O papel de parede coberto pelo pó está rasgado deixando ver mais papel de parede por baixo igualmente rasgado revelando a parede de madeira apodrecida com um buraco no meio.
Por esse buraco a classe média espreita a miséria da família, chama-lhe de catástrofe, reza a um ser surdo e nada faz para ajudar a pobre mulher esfarrapada e as crianças raquíticas.

(30 de agosto de 2017)

Rotina Noturna

Dorme, rapariga, pois estás cansada. A máscara que usas durante o dia é recarregada pela tristeza noturna que sentes quando estás sozinha. ...